1
O vento batia nas folhas das poucas árvores que
havia na orla.
Irina sempre repetia o mesmo passeio matinal, antes
de começar mais um dia em seu atelier...
E ali, sentada em uma pedra, inspirava profundamente
o ar marinho.
Gostava disso, cheiro
de maresia...
Seu filho interrompeu suas divagações pousando a mão
sobre seu ombro:
- Assustei-a mãe?
- Não meu filho, só me pegou distraída... Quer
alguma coisa?
- Sim, mãe. Aproveitando a brisa fresca da manhã,
quero saber algo que não achava adequado perguntar até minha maioridade... Quem
é meu pai?
- Sabia que um dia iria me fazer essa pergunta. Pois
bem, chegou mesmo a hora, pois já é adulto. Seu pai chama-se Gaston Verne,
sobrinho do falecido escritor Julio Verne.
- E por que nunca veio nos visitar? Não me lembro se
quer, de chegar uma carta todos esses anos...
- Filho, seu pai está internado em um sanatório
desde que atirou no tio. Ninguém soube até hoje, porque ele fez tamanha
asneira! Fato é que deixou Julio Verne coxo, até sua morte...
- Meu pai não vai sair do sanatório? Ficará
internado até que morra?
- Temo que sim... O juiz foi implacável em dizer que
Gaston era perigoso, por ser louco.
- Mãe, quero conhecer meu pai. Mereço isso. E se ele
morre e nunca nos vimos? Não, isso para mim seria terrível! Temos que ir até
esse sanatório...
- Certo, faremos essa visita a seu pai. Dentro de
uma semana prepararei tudo. Agora vamos que a vida chama...
Irina saiu de braço dado ao filho, com os
pensamentos em turbilhão:
Depois de 22 anos, reencontrar Gaston em um
manicômio, não era bem o que ela queria...
Entretanto, sabia que devia isso aos
dois, pai e filho...
2
A semana passou rapidamente. Irina e seu filho
estavam prontos para a viagem. Um coche foi chamado para levá-los até a capital e depois, rumo ao sanatório.
O clima mudava, e um vento frio de final de outono,
gelava o rosto de Irina.
A viagem agora era menos longa, pois as estradas
melhoraram muito, desde a sua primeira ida à Paris...
Durante o trajeto Irina pensava naquele senhor que
havia conhecido um mês antes... Engraçado é que tinha o mesmo nome que dera a
seu filho: Gerard.
Uma coisa aprendera durante todos aqueles anos:
Coincidências não existem, e sim, artimanhas do destino...
Será que
aquele senhor tão atraente, havia cruzado seu caminho com algum objetivo, pelas
esferas superiores? Só o tempo diria isso... Por enquanto, trataria de resolver
o problema de seu filho.
Entretanto, deu um sorriso largo, ao lembrar-se do
dia em que conheceu o advogado viúvo:
_ Boa tarde, senhora Irina! Sou Gerard Michel Leon.
Alguns amigos aqui de Nantes, recomendaram sua casa de costura. Trouxe a minha
filha Lídia, para que tome as medidas e lhe faça novo vestuário, adequado ao
clima do litoral...
- Oh, certamente... Será um prazer. Venha por aqui jovem
Lídia... Ah, meu filho cuida da administração do atelier. Ele lhe mostrará
a tabela de preços.
Tocou um sininho para chamar o filho que estava
fazendo a contabilidade no escritório. Ele veio imediatamente, e Irina fez a apresentação:
- Esse é meu filho Gerard...
- Muito prazer. Bem, então temos o mesmo nome?
- Ah, monsieur chama-se Gerard também? De certo tem
um segundo nome...
- Sim, o meu segundo nome é Michel.
- Então não se incomodará que o chame dessa forma,
pois não? É que me sinto estranho, a chamar alguém pelo mesmo nome que eu...
- Não por isso... Fique à vontade para me chamar de
Michel. Bem, agora, por favor, a tabela de preços...
- Agora mesmo!
Enquanto os homens tratavam do dinheiro, as mulheres
já estavam na sala de costura:
Lídia escolhia modelos de vestidos e chapéus e Irina
anotava suas medidas.
Foi uma tarde bem agradável: Um chá com biscoitos
amanteigados de nata foi servido para os novos clientes. E a conversa seguia
longa...
A troca de olhares cativantes era inevitável:
O advogado G.Michel, não media elogios para Irina,
assim como Gerard fazia gracejos à jovem Lídia...
Todos muito sorridentes e percebia-se que aquele
momento passava de relações comerciais...
3
O sanatório era bem arborizado e habitado por muitos
pássaros no seu entorno. Via-se uma briga entre um mentalmente desequilibrado,
e um enfermeiro que tentava colocar-lhe uma vestimenta adequada aos loucos.
Irina e seu filho
preferiam ignorar aquela cena, olhando as pessoas que vagavam pelo vasto
campo, dos arredores da ‘casa de repouso’...
Uma senhora veio lhes receber:
- Boa tarde! Em que posso lhes ser útil?
Irina disse então:
- Gostaríamos de poder falar com o senhor Gaston
Verne, por obséquio.
- Ah, bem, terão que preencher uma pequena ficha de
visita, antes disso. Por aqui...
Gerard respondeu:
- Ele está
bem de saúde? Digo, talvez menos desequilibrado, depois de tantos anos
internado...
- Oh, na verdade ele nunca me pareceu doido.
Mas, se está aqui, é porque cometeu
alguma loucura. Venham...
Gerard e Irina seguiram a senhora que lhes servia de
cicerone naquele local. Adentraram o
recinto de paredes brancas e teto verde água. Um cheiro de “limpeza” era notado
assim que se passava pelo corredor.
Pararam frente a uma porta que tinha um pequeno
balcão de recepção. Ali assinaram o livro de visitas onde colocaram seus nomes
e a hora da chegada.
A senhora disse então, apontando:
- Bem, agora podem seguir o restante do corredor e
sigam até encontrar o número 28, que é o aposento onde Gaston Verne se
encontra.
- Muito obrigada.
Gerard, que até aquele momento parecia tranquilo, ao
chegar ao quarto 28, começou a suar gelado nas mãos...
Irina percebendo que o filho estava tenso, disse:
- Calma, meu filho. Gaston nunca foi mau. O fato de
ele ter atirado no tio, foi uma insensatez que tenho certeza, foi momentânea...
O problema é que o juiz achou que ele fosse louco. Dentro de mim. Sei que não o
é. Vamos entrar...
Gerard bateu levemente na porta e girou a maçaneta,
passando sua mãe à frente...
Um homem abatido, com algumas pequenas rugas na
face, cabelos e barba aparados, olhava para o lado de fora da janela.
Assim que
percebeu a presença de alguém, virou-se e reconheceu Irina de imediato! Não sabia quem era seu acompanhante. Mas, ao
olhar bem para o rapaz de olhos marejados, percebia alguma semelhança com ele
mesmo na juventude...
Pensou que seria mais uma loucura sua, com
certeza...
Irina tomou a frente e abraçou-o com todo fervor por
todos os anos que não o via... Gaston então, disse visivelmente emocionado:
- Minha doce Irina! Quantos anos desejei que viesse
me visitar! Neste lugar enlouquecia mesmo era de tanta paixão e saudade! Por
que nunca veio?
- Gaston, perdoe-me essa longa ausência... De
início, fiquei sabendo que me encontrava grávida. Não poderia viajar nesse
estado...
Depois meu filho, quer dizer, nosso filho, nasceu, e
dedicava-me a cuidar dele e de nosso sustento. Trabalhava muito, virando as
noites nas costuras, e inventando modelos novos. O tempo foi passando, e decidi
que só falaria da sua existência, caso Gerard quisesse conhecer o pai...
Bem, e
aqui estamos. Ele quis saber.
Nunca deixei de lembrar de você, meu
único e grande amigo, pois também foi o único a me tocar e plantar um filho
abençoado...
Novamente abraçaram-se. O abraço do casal uniu-se ao
do filho emocionado...
E assim, ficaram por minutos: Um único choro, misto
de alegria, saudade e tristeza...
Depois, Gaston pegou a mão de Irina e a levou para sentar-se
na cadeira que ficava ao lado de sua cama.
Virou-se para o filho dizendo:
- Depois de tantos anos de reclusão e tristeza,
finalmente tenho uma boa notícia para me dar total alegria: Um filho! Ah, como
gostaria de ter visto sua mãe a te dar a luz! E assistir aos seus primeiros
sorrisos, a falar, andar... A vida me privou de tudo isso... Mas, aqui está
você! Agradeço aos céus essa chance, antes do dia derradeiro!
- Não fale assim meu pai. Tudo tem hora certa para
acontecer. Ainda viverá alguns anos, com
certeza. Virei aqui sempre que puder para visitá-lo. E se mamãe quiser virá
também...
Gaston segurando a mão de Irina, disse quase
implorando:
- Por favor, Irina, venha sempre acompanhando nosso
filho...
- Não posso prometer que virei sempre Gaston... Mas,
sim, quando possível. O atelier toma muito meu tempo. Agora mesmo, deixei duas
costureiras abarrotadas de encomendas para vir te visitar...
- Está certo, entendo sua posição. Mas, me contem
tudo que deixei de saber sobre vocês...
A conversa estendeu-se por 3 longas horas, e entre
risos e lamentos, parecia realmente uma família.
4
O retorno para Nantes foi no dia seguinte. Irina e
Gerard dormiram numa estalagem perto do sanatório. Pela manhã, ainda fizeram
mais uma visita à Gaston, antes da partida.
Gaston pediu com a voz embargada e olhos carregados
de lágrimas:
- Não deixem de voltar, por favor. Assim a minha pena aqui, se tornará mais leve. Antes
minha vida estava apagada. Agora tenho pelo que ansiar...
Irina segurou as duas mãos de Gaston respondendo:
- Sempre que pudermos meu amigo. Fique bem.
Gaston beijou a testa e as mãos de Irina e em
seguida, ao filho deu forte abraço, com uma boa batida nas costas... Era assim
que os homens se felicitavam.
O coche chegou e Gerard ajudou sua mãe a subir com a
pequena bagagem que levaram. Em seguida, acenaram para Gaston, com lágrimas nos
olhos.
Ele acenava também, observando a carruagem
sumir pelos portões e ganhar a estrada...
A noite já estava alta, quando Irina e Gerard
ouviram alguém bater na porta do atelier.
Estranharam porque visitas depois das 22:00 hs não
eram comuns. Gerard disse já caminhando para abrir:
- Fique aí sentada mãe, vou ver do que se trata.
Abriu a porta e deu com o advogado G.Michel desesperado:
- Por favor, esse é o último lugar para procurar, já
fui a todos os lugares possíveis!
Sem entender do que o homem falava, Gerard abriu
caminho para que ele entrasse.
- Diga quem ou o que, está procurando, meu amigo?
- Lídia! Está sumida desde o início da tarde de
hoje!
- Como pode
ser isso? Lídia sempre sai acompanhada!
- Sim, quando não está comigo, sai com a nossa
governanta... Mas, hoje ela simplesmente sumiu dos olhos de madame Gertrudes!
Quando foram ao mercado escolher frutas e legumes, Lídia distanciou-se um
pouco, para olhar os animais à venda. Gosta muito de coelhos... Bem, entretida
com as compras, madame Gertrudes não reparou quando ela sumiu... Agora estamos
loucos, batendo de porta em porta, perguntando se alguém a viu ou tem alguma
pista...
Irina escutando a conversa levantou-se dizendo:
- Meu Deus! O que terá acontecido com a jovem Lídia?
Ainda a vi hoje, passando embaixo de minha janela, com a governanta. Sim,
tomavam o rumo do mercado... Ninguém a viu depois disso?
- Ah, madame Irina, nada! Parece que minha Lídia
sumiu no ar! Como lembrei que ela tem muito apreço por vocês, pensei até que
tivesse vindo fazer uma visita e ficou até mais tarde... Pena, não foi isso que
aconteceu! Não sei mais onde procurar.
Gerard então disse tentando acalmar o homem:
- Tente imaginar tudo que pode ter acontecido: Será
que ela foi raptada, ou embrenhou-se pela estrada passeando sozinha e não soube
voltar?
- Não, Lídia não teria esse tipo de atitude, porque
sempre avisa para nossa governanta aonde quer ir... Sim, a primeira opção é mais provável: Que ela tenha sido raptada...
- Nesse caso, já falou com as autoridades?
- Sim, eles estão cientes e procuram por pistas. Mas
eu não quero ficar de mãos atadas esperando... Procuro também.
Irina disse vacilante:
- Quem sabe Lídia tenha um amor escondido e resolveu
ir embora com ele?
- Nosso diálogo é aberto, porque ela só tem a mim.
Se fosse esse o caso, ela teria me
falado de alguém e pediria permissão para trazê-lo em casa. E falemos a
verdade: Lídia mostra apenas interesse em Gerard...
Gerard
entusiasmou-se com esse comentário. Ele também só tinha olhos para Lídia.
Pensava já em pedir ao advogado para cortejar sua
filha... Mas, e agora, com a moça desaparecida?
Irina então falou já com a sua intuição aguçada:
- Bem, então resta procurar pelas casas abandonadas
da praia... Pode ser que a tenham levado para uma delas. Tem pelo menos quatro casas que foram
deixadas pelo povo que foi para outras cidades...
- Bem lembrado mãe! Sim, se Lídia foi raptada, não a
levariam para longe... Teriam de ficar próximos, para pedir resgate.
O advogado
concordou:
- É estão raciocinando melhor que eu... Agora a
noite já vai alta. Eles devem até estar dormindo. Entretanto, deve ter algum
bandido de vigia...
- Cuidar de um, é mais fácil que de vários! Vamos?
Irina ficou preocupada com a coragem do filho, de
sair para enfrentar com G.Michel, os
bandidos e resgatar a jovem donzela.
Talvez ele estivesse mesmo apaixonado por Lídia. Só
isso explicava sua atitude...
Não poderia segurar o filho em casa, se ele já
estava decidido... Pediria para que Deus cuidasse dele e de Michel, trazendo-os
sãos e salvos com Lídia.
Quando acabou de pensar isso, ouviu somente a voz do
filho dizendo:
- Estamos indo, mãe. Reze para que tudo dê certo.
Vamos passar antes na casa de monsieur Michel, para pegarmos duas armas. Um precisa dar cobertura ao
outro.
- Que Deus os abençoe, os leve e traga bem,
juntamente com a jovem Lídia.
- Amém.
Responderam os dois homens ao mesmo tempo.